Um dia eu estava
brincando com os meus carrinhos. Eu sempre gosto dos meus carrinhos,
principalmente quando estou triste: aí eu faço uma estrada bem comprida e
faz-de-conta que vou viajar bem longe, até passar a tristeza.
Eu posso viajar para
muitos lugares misteriosos, como, por exemplo, o país dos anões, que ás vezes
fica debaixo da cama da vovó, e que é u, lugar escuro e cheio de poeira quando
a Marta esquece de varrer.
Ou eu posso ir até a
terra dos monstros antediluvianos, e lá é bom porque eu fico logo morrendo de
medo e é bom ficar com muito medo de faz-de-conta porque quando a gente quer é
só desmanchar o faz-de-conta e o medo acaba.
E tem um lugar pra
onde eu vou, mas só quando estou muito triste mesmo. É um planeta que fica no
meio de uma porção de estrelas e é o planeta mais distante do universo. Eu
posso ir viajar para muitos planetas diferentes, também, porque os meus
carrinhos têm um superdispositivo que eu inventei e que faz eles virarem nave
interplanetária superveloz.
E, naquele dia que
eu estava contando, ia justamente viajar no meu carrinho vermelho que é o
foguete mais interplanetário que eu tenho e o que vai mais longe. Eu ia lá para
o planeta mais distante do universo no meu carrinho vermelho porque acontece
que eu estava muito triste, muito triste mesmo, e também com muita raiva das
coisas.
Eu não gosto de
ficar triste e Enem com raiva, porque parece que a gente tem uma bola pesada
dentro da gente. Papai tinha prometido levar a gente ao zoológico no domingo, e
eu tinha esperado o domingo arrancando as folhas da folhinha da mamãe todos os
dias_ e quando a ente espera muito um domingo ele demora demais pra chegar. E
quando chegou, chegou feio, com chuva e ventania. Chovia tanto que fez duas
enxurradas na rua de casa.
Choveu de manhã e
choveu na hora do almoço. Quando foi de tarde, ainda estava chovendo e o meu
pai falou que o zoológico ficava pra outro dia. Foi aí então que eu fiquei
triste, muito triste mesmo, porque assim eu nunca vou conhecer o zoológico, todo
mundo conhece, menos eu.
E fui brincar com os
carrinhos. Dessa vez eu tinha que fazer uma viagem bem comprida mesmo. Então
armei uma rampa com umas tabuas, e uma plataforma de lançamento bem grande.
Foi difícil porque a
rampa e a plataforma caíam a toda hora, mas depois de muito tempo eu consegui
montar tudo bem firme e direito. Ficou uma beleza.
Foi ai que apareceu
o Rodrigo. O Rodrigo é o meu irmão e a gente chama ele de Rô. Ele veio entrando
no meu quarto, mas era hora do lançamento do meu foguete secreto e eu queria
ficar sozinho e falei:
_ Vai embora, Rô.
Mas o Rô ainda é
pequeno, ele tem só três anos e ainda não aprendeu que tem hora que a gente
quer ficar sozinho. Ele nem ligou pro que eu falei e veio vindo. Ia pegar justo
o meu carrinho vermelho, que eu já tinha transformado em foguete, e que estava
pronto para a partida.
Então eu comecei a
puxar ele para fora do quarto e ele começou a gritar e a puxar para o outro
lado. Eu estava quase ganhando quando a mão dele escapou da minha e ele caiu
pra trás, bem em cima da minha plataforma de lançamento.
Foi um desastre, o
tombo do Rodrigo acabou com a rampa, com a plataforma, com tudo. Tudo o que eu
tinha construído com tanto trabalho.
Fiquei morrendo de
raiva. Fiquei tão zangado que quase chorei. Eu estava furioso. E dei um tapa
com toda a força na bochecha do Rô. Foi uma choradeira. Meu irmão berrou de
verdade.
E quando mamãe veio
ver o que tinha acontecido, não deu nem pra explicar, porque a marca da minha
mão ainda estava vermelhinha na bochecha dele.
Mamãe ficou tão
brava comigo, disse que eu não precisava bater no meu irmão, que é menor que
eu, e todas essas coisas que mãe diz. Mas eu também estava bravo porque sem
plataforma nem rampa não da pra viajar direito.
Peguei os carrinhos
e ia organizar uma corrida, mas a minha mão estava esquisita. Olhei para ela, e
lá estava a marca do tapa que eu dei no Rô. Esfreguei a mão na perna da calça,
mas o tapa continuava lá.
Fui olhar a chuva
pela janela, e respirei na vidraça ate o vidro ficar todo embaçado. Depois
limpei o embaçado com a mão, mas a rua toda parecia que fiava sabendo que
aquela mão era a do menino do tapa.
Numa janela lá em
frente, tinha uma moça olhando pra mim, e eu escondi a mão atrás das costas.
Pensei assim:
_ Vai ver que a
minha mão está suja e é por isso que ela está assim esquisita. Vou lavar até
que ela fique limpinha, cheirosa e cor-de-rosa.
Eu fui mesmo. Lavei
as mãos bem lavadinhas, fiz bastante espuma como sabonete líquido da mamãe, e,
quando acabei, elas estavam limpinhas, cheirosas e cor-de-rosa. Mas o tapa
continuava lá, grudado
Vovó estava lendo,
no quarto. Fui pergunta:
_ Vó, tem alguma
coisa diferente aqui na minha mão?
Vovó tirou os
óculos, examinou minha mão e disse:
_ Tem, sim!
_ O que?
_ Ela está limpinha!
Que milagre é esse? Você esta sempre de mão de porquinho!
_ Não vó... Olha
direito, eu disse, porque fiquei com vergonha de perguntar se ela estava vendo
alguma coisa com cara de tapa na minha mão.
_ Tem vendo, então,
disse a vovó. Agora deixe eu ler, viu?
E me deu um beijo e
me mandou brincar pra lá. Fui para o meu quarto, muito aborrecido porque
ninguém ia me ajudar a tirar aquele tapa da minha mão.
Na hora do lanche eu
estava meio sem fome. Papai pensou que era tristeza por causa do zoológico, e
disse que a gente ia no próximo domingo. Mas eu não estava mais nem lembrando
do zoológico.
Olhei para o Rodrigo
e a bochecha dele estava igual a outra: não tinha mais a marca do meu tapa. A
danada da marca estava agora na minha mão, e isso me tirou ate a fome de comer
o bolo de fubá quentinho que a mamãe tinha feito e que é a coisa que eu mais
gosto no mundo.
Comi um pedacinho, e
achei que não tinha gosto de nada. Então eu inventei que estava com muito sono
e fui deitar. Mas o tapa foi deitar comigo, grudado na minha mão.
_ Sai daí, tapa, eu
falei, olhando pra ele. E ele nada.
O Rodrigo veio
deitar na cama dele que fica perto da minha. Ele já tinha esquecido da nossa
briga. Deu dois pulos no colchão, disse tchau e dormiu. Meu irmão é engraçado,
eu até gosto dele. Ele é legal, apesar de ser meu irmão e baixinho. Gostaria
mesmo de não ter batido nele.
Eu queria dormir, e
o sono não vinha de jeito nenhum, nem eu enterrado o nariz no travesseiro,
porque aí ficava difícil respirar, nem deitando de costas porque o tapa ia
ficando pesado e parecia que ia afundar cada vez mais no colchão, no chão do
quarto, parecia que eu cair num buraco fundo.
E acho que aí eu
dormi e sonhei que andava na rua e todo mundo apontava:
_ Olha lá um tapa
levando um menino pela mão!
No dia seguinte,
pulei da cama e fui olhar o Rô, que ainda estava dormindo.
_ Acorda, mano! Eu
falei. E quando ele acordou eu disse: _ Desculpa do tapa, viu? _ mas acho que
ele nem lembrava mais da briga
_ Vem cá.
Ele levantou e veio.
E eu levei meu irmão para onde estavam os carrinhos.
_ Vamos brincar, Rô?
_ Vamos!
Ensinei pra ele como
eu fazia funcionar o carro foguete.
_ Agora o
superfoguete vai fazer uma viagem muito comprida e perigosa, uma missão secreta
num planeta misterioso. É um segredo que você não pode contar pra ninguém, viu?
Eu tinha que
explicar as coisas pro Rô porque ele é muito pequenininho ainda. _ Entendeu,
Rô?
Ele disse que
entendeu. Então a gente preparou o superfoguete.
_ E sabe o que é que
o foguete vai levar, Rô? Não? Pois ele vai levar um tapa!
E então eu dei um
tabefe tão grande no carrinho que ele saiu voando sem rampa nem plataforma.
O Rodrigo até caiu
sentado de tanta risada. E eu fiquei contente porque o tapa foi mesmo embora da
minha mão. De repente a gente reparou que estava morrendo de fome. O Rô pegou
na minha mão e fomos nós dois para a cozinha tomar café com bolo de fubá.
Editora
FTD S.A
Coleção
segundas histórias
Publicado
em 1999
Autora
Ciça
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