sábado, 2 de março de 2013

O tapa- Ciça



Um dia eu estava brincando com os meus carrinhos. Eu sempre gosto dos meus carrinhos, principalmente quando estou triste: aí eu faço uma estrada bem comprida e faz-de-conta que vou viajar bem longe, até passar a tristeza.
Eu posso viajar para muitos lugares misteriosos, como, por exemplo, o país dos anões, que ás vezes fica debaixo da cama da vovó, e que é u, lugar escuro e cheio de poeira quando a Marta esquece de varrer.
Ou eu posso ir até a terra dos monstros antediluvianos, e lá é bom porque eu fico logo morrendo de medo e é bom ficar com muito medo de faz-de-conta porque quando a gente quer é só desmanchar o faz-de-conta e o medo acaba.
E tem um lugar pra onde eu vou, mas só quando estou muito triste mesmo. É um planeta que fica no meio de uma porção de estrelas e é o planeta mais distante do universo. Eu posso ir viajar para muitos planetas diferentes, também, porque os meus carrinhos têm um superdispositivo que eu inventei e que faz eles virarem nave interplanetária superveloz.
E, naquele dia que eu estava contando, ia justamente viajar no meu carrinho vermelho que é o foguete mais interplanetário que eu tenho e o que vai mais longe. Eu ia lá para o planeta mais distante do universo no meu carrinho vermelho porque acontece que eu estava muito triste, muito triste mesmo, e também com muita raiva das coisas.
Eu não gosto de ficar triste e Enem com raiva, porque parece que a gente tem uma bola pesada dentro da gente. Papai tinha prometido levar a gente ao zoológico no domingo, e eu tinha esperado o domingo arrancando as folhas da folhinha da mamãe todos os dias_ e quando a ente espera muito um domingo ele demora demais pra chegar. E quando chegou, chegou feio, com chuva e ventania. Chovia tanto que fez duas enxurradas na rua de casa.
Choveu de manhã e choveu na hora do almoço. Quando foi de tarde, ainda estava chovendo e o meu pai falou que o zoológico ficava pra outro dia. Foi aí então que eu fiquei triste, muito triste mesmo, porque assim eu nunca vou conhecer o zoológico, todo mundo conhece, menos eu.
E fui brincar com os carrinhos. Dessa vez eu tinha que fazer uma viagem bem comprida mesmo. Então armei uma rampa com umas tabuas, e uma plataforma de lançamento bem grande.
Foi difícil porque a rampa e a plataforma caíam a toda hora, mas depois de muito tempo eu consegui montar tudo bem firme e direito. Ficou uma beleza.
Foi ai que apareceu o Rodrigo. O Rodrigo é o meu irmão e a gente chama ele de Rô. Ele veio entrando no meu quarto, mas era hora do lançamento do meu foguete secreto e eu queria ficar sozinho e falei:
_ Vai embora, Rô.
Mas o Rô ainda é pequeno, ele tem só três anos e ainda não aprendeu que tem hora que a gente quer ficar sozinho. Ele nem ligou pro que eu falei e veio vindo. Ia pegar justo o meu carrinho vermelho, que eu já tinha transformado em foguete, e que estava pronto para a partida.
Então eu comecei a puxar ele para fora do quarto e ele começou a gritar e a puxar para o outro lado. Eu estava quase ganhando quando a mão dele escapou da minha e ele caiu pra trás, bem em cima da minha plataforma de lançamento.
Foi um desastre, o tombo do Rodrigo acabou com a rampa, com a plataforma, com tudo. Tudo o que eu tinha construído com tanto trabalho.
Fiquei morrendo de raiva. Fiquei tão zangado que quase chorei. Eu estava furioso. E dei um tapa com toda a força na bochecha do Rô. Foi uma choradeira. Meu irmão berrou de verdade.
E quando mamãe veio ver o que tinha acontecido, não deu nem pra explicar, porque a marca da minha mão ainda estava vermelhinha na bochecha dele.
Mamãe ficou tão brava comigo, disse que eu não precisava bater no meu irmão, que é menor que eu, e todas essas coisas que mãe diz. Mas eu também estava bravo porque sem plataforma nem rampa não da pra viajar direito.
Peguei os carrinhos e ia organizar uma corrida, mas a minha mão estava esquisita. Olhei para ela, e lá estava a marca do tapa que eu dei no Rô. Esfreguei a mão na perna da calça, mas o tapa continuava lá.
Fui olhar a chuva pela janela, e respirei na vidraça ate o vidro ficar todo embaçado. Depois limpei o embaçado com a mão, mas a rua toda parecia que fiava sabendo que aquela mão era a do menino do tapa.

Numa janela lá em frente, tinha uma moça olhando pra mim, e eu escondi a mão atrás das costas. Pensei assim:
_ Vai ver que a minha mão está suja e é por isso que ela está assim esquisita. Vou lavar até que ela fique limpinha, cheirosa e cor-de-rosa.
Eu fui mesmo. Lavei as mãos bem lavadinhas, fiz bastante espuma como sabonete líquido da mamãe, e, quando acabei, elas estavam limpinhas, cheirosas e cor-de-rosa. Mas o tapa continuava lá, grudado
Vovó estava lendo, no quarto. Fui pergunta:
_ Vó, tem alguma coisa diferente aqui na minha mão?
Vovó tirou os óculos, examinou minha mão e disse:
_ Tem, sim!
_ O que?
_ Ela está limpinha! Que milagre é esse? Você esta sempre de mão de porquinho!
_ Não vó... Olha direito, eu disse, porque fiquei com vergonha de perguntar se ela estava vendo alguma coisa com cara de tapa na minha mão.
_ Tem vendo, então, disse a vovó. Agora deixe eu ler, viu?
E me deu um beijo e me mandou brincar pra lá. Fui para o meu quarto, muito aborrecido porque ninguém ia me ajudar a tirar aquele tapa da minha mão.
Na hora do lanche eu estava meio sem fome. Papai pensou que era tristeza por causa do zoológico, e disse que a gente ia no próximo domingo. Mas eu não estava mais nem lembrando do zoológico.
Olhei para o Rodrigo e a bochecha dele estava igual a outra: não tinha mais a marca do meu tapa. A danada da marca estava agora na minha mão, e isso me tirou ate a fome de comer o bolo de fubá quentinho que a mamãe tinha feito e que é a coisa que eu mais gosto no mundo.
Comi um pedacinho, e achei que não tinha gosto de nada. Então eu inventei que estava com muito sono e fui deitar. Mas o tapa foi deitar comigo, grudado na minha mão.
_ Sai daí, tapa, eu falei, olhando pra ele. E ele nada.
O Rodrigo veio deitar na cama dele que fica perto da minha. Ele já tinha esquecido da nossa briga. Deu dois pulos no colchão, disse tchau e dormiu. Meu irmão é engraçado, eu até gosto dele. Ele é legal, apesar de ser meu irmão e baixinho. Gostaria mesmo de não ter batido nele.
Eu queria dormir, e o sono não vinha de jeito nenhum, nem eu enterrado o nariz no travesseiro, porque aí ficava difícil respirar, nem deitando de costas porque o tapa ia ficando pesado e parecia que ia afundar cada vez mais no colchão, no chão do quarto, parecia que eu cair num buraco fundo.
E acho que aí eu dormi e sonhei que andava na rua e todo mundo apontava:
_ Olha lá um tapa levando um menino pela mão!
No dia seguinte, pulei da cama e fui olhar o Rô, que ainda estava dormindo.
_ Acorda, mano! Eu falei. E quando ele acordou eu disse: _ Desculpa do tapa, viu? _ mas acho que ele nem lembrava mais da briga
_ Vem cá.
Ele levantou e veio. E eu levei meu irmão para onde estavam os carrinhos.
_ Vamos brincar, Rô?
_ Vamos!
Ensinei pra ele como eu fazia funcionar o carro foguete.
_ Agora o superfoguete vai fazer uma viagem muito comprida e perigosa, uma missão secreta num planeta misterioso. É um segredo que você não pode contar pra ninguém, viu?
Eu tinha que explicar as coisas pro Rô porque ele é muito pequenininho ainda. _ Entendeu, Rô?
Ele disse que entendeu. Então a gente preparou o superfoguete.
_ E sabe o que é que o foguete vai levar, Rô? Não? Pois ele vai levar um tapa!
E então eu dei um tabefe tão grande no carrinho que ele saiu voando sem rampa nem plataforma.
O Rodrigo até caiu sentado de tanta risada. E eu fiquei contente porque o tapa foi mesmo embora da minha mão. De repente a gente reparou que estava morrendo de fome. O Rô pegou na minha mão e fomos nós dois para a cozinha tomar café com bolo de fubá.
 

Editora FTD S.A
Coleção segundas histórias
Publicado em 1999
Autora Ciça